quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Quando Carlos Lage tentou acabar com os cigarros no hemiciclo*

Face à polémica do fumo, vale a pena recuperar as pérolas de um debate parlamentar de 1984, travado a partir de uma proposta de alteração do regimento.
O socialista Carlos Lage (com Leonel Fadigas), que já tinha apresentado um projecto semelhante cinco anos antes, era o primeiro subscritor de uma alínea que visava proibir o fumo no interior da sala de reuniões e nas galerias:
-Recentemente, lavaram-se as paredes da Sala, alcatifou-se o chão, enfim, limpou-se o hemiciclo. Mal pareceria que agora, com nuvens espessas de fumo e com alguns dos Srs. Deputados a parecerem chaminés, se permitisse sujar as paredes da Câmara e estragar algumas das belas pinturas que aqui se encontram. Mas nós não estamos só preocupados com a estética da Sala,mas com a saude das nossas vias respiratórias.
(...)
A eliminação do fumo vai melhorar a qualidade da intervenção no Parlamento (...) numa atmosfera tão poluída, tão fumarenta, tão opaca, as próprias ideias tambem se tornam nebulosas.

Vilhena de Carvalho (ASDI), feroz opositor da proibição, sugeria alternativa:

-Isso resolve-se muito facilmente: depois de se ter alcatifado o chão da sala e depois de se pôr cortinas novas, podia providenciar-se no sentido de esta sala ter exaustores.

Carlos Lage:

-Há os exaustos de fumar sem fumar e o Sr. Deputado recomenda exaustores! (...) Há sessões que são verdadeiramente intoleráveis. (...) A certa altura temos aqui um cogumelo de fumo, assim uma espécie de smog, como se sabe num nevoeiro verdadeiramente insuportável.

António Taborda (MDP/CDE):

-(...) a mais moderna teoria médica entende que há um equilíbrio psíquico entre o fumador e o cigarro, e que se esse equilíbrio for destruído pode trazer graves perturbações psíquicas.

Jorge Lemos (PCP) para Carlos Lage:

-Será que V. Exa, no futuro, vai propor o teste da alcoolemia à entrada do Plenário para evitar que haja intervenções parlamentares sob a influência do alcool ?

Marcelo Curto (PS):

-(...)mais do que contra o fumo, sou contra a intolerância e as tentativas veladas de puritanismo e de ditadura sobre o seu semelhante. Outro exemplo deste puritanismo e de tentativa ditatorial é o perigo que representam para a saude os carros a diesel e os fumos dos escapes dos automóveis (...) mas quando se trata de tomar medidas, fazem-se umas leis que limitam a emissão de fumos e produtos tóxicos, faz-se a limpeza dos monumentos, mas não se fazem motores que não produzam poluição, nem se proibem os que produzem.

César de Oliveira (UEDS):

-Sr. Deputado, eu dou de barato que o cigarro prejudica a saude (...)no entanto, se se vai proibir o cigarro e o fumo nesta Sala, eu acho que se deviam proibir outras coisas que a mim me incomodam sobremaneira (...)o Sr. Deputado não admite, por exemplo - e algum médico poderá testemunhá-lo - que há Sras. e Srs. Deputados que utilizam perfumes que, por exemplo, a mim me causam fortíssimas dores de cabeça...(risos)...que me incomodam e que certamente fazem mal à minha saude ?

Lopes Cardoso (UEDS) lembrava que a Assembleia aprovara, pouco tempo antes,

-por unanimidade, com o aplauso dos Srs. Deputados, uma lei de prevenção do tabagismo. Esta lei não se limitava a ter um carácter pedagógico, mas proibia o fumo em recintos fechados.

Santa Rita Pires (PSD) contrapunha:

-Faço-lhe só uma pergunta neste termos, que, ao fim e ao cabo, são levados quase ao ridículo: a maior parte dos portugueses tem carro, mas há uma percentagem muito grande que não tem. Os carros que andam na rua poluem o ar que é respirado, quer pelas pessoas que têm carro, quer pelas que não têm. Será justo que os que não têm carro peçam aos que têm que deixem de andar de carro ?

Igrejas Caeiro (PS):

-Não sou capaz de entender a preocupação daqueles que, num momento importante da sua actuação nesta Assembleia, perdem qualidades se não acenderem um cigarro. Mas, enfim ! E eu ?! Se num momento importante da minha actuação nesta Assembleia me acenderem um charuto e um cigarro e eu tiver um catarro ou a minha asma, não posso actuar como deputado, pois as minhas qualidades tambem vão ficar dimunuídas.

Oliveira e Costa (PSD):

-Fiquei com algumas dúvidas se, para além da questão do fumo, não haverá alguns Srs. Deputados que pretendem dar aqui algumas lições de moral e de comportamento a outros deputados. Será que vai haver alguma alteração ao Regimento para não se poder ler livros pornográficos na Assembleia ou o jornal A Bola ?

Lopes Cardoso em resposta a Silva Marques (PSD):

-O sr. Deputado referiu que a questão não tem dignidade regimental. Mas será que tem mais dignidade o artigo 102 que diz que "No uso da palavra, os oradores dirigir-se-ão ao Presidente e à Assembleia e deverão manter-se de pé"? Será que se receia que os Srs. Deputados se dirijam de cócoras, de costas ou não sei como ?

Depois de horas de discussão, Carlos Lage anunciava:

-Retiro a proposta de alteração ao Regimento que fiz sobre esta questão. Coloquei na Mesa um projecto de resolução que tem o mesmo conteúdo. Agora, convido os Srs. Deputados que aqui esgrimiram todo o dia contra esta proposta, a encontrarem a solução. (...)Não quero violentar ninguém, prefiro que me continuem a violentar...

Só em 1987 passou a ser proibido fumar no hemiciclo e nas galerias.

*Infelizmente não há registo audio deste debate. Só as actas do Diário da Assembleia da República.

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